o mar do poeta

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sexta-feira, fevereiro 25

NA ROTA DOS CANHÕES 14a. Parte

Monday, August 04, 2008

NA ROTA DOS CANHÕES - MANUEL BOCARRO - O GRANDE FUNDIDOR

Parte 14ª
Na primeira metade do século XVII a artilharia não se tinha diferenciado em naval e terreste pelo que, pesados canhões de bronze eram usados a bordo, mau grado os graves inconvenientes da ocupação de espaço - que a bordo é sempre reduzido - diminuição do poder de carga, foram os danos que causavam nos madeiramentos do navio, muito especialmente quando faziam fogo. estas desvantagens juntavam-se as do maior peso e volume das munições, da pólvora, e essencialmente, uma guarnição numerosa, factor importantíssimo na vida de bordo pois refletia-se quer no espaço de alojamento para os homens quer na sua alimentação e, ainda, na disciplina, nem sempre fácil de se conseguir em pessoal com tempo de serviço diário reduzido. Os grandes canhões de bordo tinham interesse para o bombardeamento de uma cidade ou ataques as fortalezas, construídas junto às costas, muitas das vezes seriam obrigados a fazer fogo entre as distâncias de os 2000 a 2500 metros, o mesmo já não acontecia na luta entre as naus. Os grandes alcances deixavam de ter interesse dado que as abordagens das naus se faziam entre os 30 a 40 metros e na perseguição, destas, os disparos seriam feitos na ordem dos 100 a 150 metros. A questão dos alcances, quando utilizados os grandes canhões pelo "condestável" de uma maneira grosseira, mais ou menos empírica dado que os alcançes variavam, para o mesmo ângulo de tiro, com carga explosiva, para se evitarem tiros além das distâncias normais, diminuindo com isto a quantidade de pólvora. Porém, nas chamadas peças de "camara encarnada" para que a pólvora ficasse devidamente comprimida era necessário que a bucha ou taco, que separava do pelouro, tivesse maiores proporções. A "ciência" do condestável consistia em calcular o comprimento da bucha, que podia ir dos 5 aos 50 centímetros, numa proporção inversamente proporcionalmente aos alcances. Uma peça de artilharia destinada à defesa imediata de um navio tinha que estar preparada com uma mecha de estopim fortemente impregnada de pólvora e a carga explosiva "atacada" pelo taco que ficava firmemente encostado ao pelouro de ferro. Depois deste era colocado, sob pressão dos soquetes, a "rêde focinheira", para não permitir que a bala se movimentasse com os balanços do navio, e, por fim, era posta a "tapa rabo", ou seja, uma espécie de enorme rolha de cortiça que vedava a boca da peça. Qualquer canhão, assim preparado, quer fosse para pequenas ou grandes viagens, tinha que ser cuidadosamente protegido da humidade e da água do mar, pelo que era quase que "embrulhado" em peles de boi praticamente com o couro ainda verde. Estas peles, muito em especial aquelas preparadas em Goa, eram mal curtida, como, aliás, ainda hoje o são. Com efeito, os cortidores goeses, designados por "chamares", limitam-se a pôr as peles em água misturada com cal, para as macerar e cair o pelo. Em seguida, para as curtir, colocam-nas, durante cerca de uma semana, em tinas com água e folhas de anvali ou casca de marêta. Ao fim de algum tempo retiram-nas e secam-nas à sombra e, quando bem secas, consideram-nas "peles curtidas". Para que estas peles, assim separadas, pudessem resistir às longas viagens marítimas, com uma demorada passagem pelas zonas tórridas, e não apodrecessem era necessário e indispensável barrá-las, abundantemente, com alúmem, em especial de sulfato de ferro. De todos os canhões embarcados no Sacramento - quer os próprios do armamento, quer os da carga - teriam sido escolhidos os maiores para a defesa do navio. Assim, pesadas as colubrinas, com 2 ou três toneladas de peso e uns 3 a 4 metros de comprimento, foram colocadas no convés, nos devidos reparos, prontas a fazer fogo, dado que o galeão, em qualquer altura da viagem para Lisboa, corria o perigo de encontrar corsários holandeses ou ingleses e, além disso, nas costas de Portugal, havia a temer a armada de Castela. Não era mais que um pesado navio, imensamente carregado: mais de 60 canhões de ferro e de bronze, amontoados desde os porões ao tombadilho, toneladas de especiarias empilhadas nas próprias câmaras, dois três canhões de bronze, por borda, empachando o convês, e um formigueiro de pessoas procurando encafuar-se nos mais reduzidos espaços - a que chamavam "gazalhados" - na esperança de regressarem ao reino ditante. Na tarde de 3ª feira, do dia 19 de Fevereiro de 1647, Luis de Miranda Marques, capitão-mor do galeão Sacramento e António da Câmara de Noronha, capitão da nau Nossa Senhora da Atalaya, embarcaram em engalanadas galeotas e foram para bordo dos seus navios, ancorados a meio do Mondavi, acompanhados de dezenas de embarcações miúdas onde músicos "tocavam toda a sorte de instrumentos" enquanto nas fortalezas de Goa e nos navios fundeados se davam descargas de arcabuzaria e salvas de artilharia. Pouco tempo depois o próprio vice-Rei D. Filipe de Mascarenhas foi a bordo dos navios, acompanhado "com muitas embarcações de amigos e parentes" para desejar votos de boa viagem e fazer a entrega simbólica dos Regimentos de navegação para o reino. No dizer de Bento Teixeira Feyo - um dos poucos sobreviventes do naufrágio da nau Atalaya e único relator daquela odisseia - a despedida das águas azuis e calmas do Mandovi, tendo por fundo o casario imponente de "Goa Dourada", foi tão afectuosa que a "saudade acrescentava o sentimento e as lágrimas, em todos os olhos brotavam livremente". Pela madrugada do dia seguinte a marinhagem e passageiros, num total que devia orçar pelas mil pessoas, com "sentidas lágrimas" desfraldaram as velas, suspenderam as pesadas âncoras e, com destino a Portugal... onde a esmagadora maioria dos homens e os dois navios, jamais chegariam. Não podemos descrever, passo a passo, o que foi a viagem do galeão Sacramento e da sua companheira a nau Atalaya durante a travessia do Ìndico, pois foram quatro longos meses, ora de tempo bonançosos ora de grandes mares, com as ocorrências inerentes às viagens de então. Horas boas e más, díficeis de se resumirem e que se não ligam, directamente ao assunto deste estudo. Assim vamo-nos reportar, unicamente, aos últimos dias do mês de Junho de 1647, com mais precisão, a 30 de Junho, um dia depois de S.Pedro. Por entre grandes mares - resto do temporal do dia de S. João - o Sacramento navegava com traquete, aproximando-se de terra. "Saindo a Lua - como, depois, escreveu Teixeira feyo - os da vigia derão fé de Terra muyto perto, & avistando, mandou o Piloto marear para o mar, sendo o vento pouco, & a agua tirava para terra muyto, & estandoo galeão meyo arribado, o não acabou de fazer, por mais diligencias, que lhe fizerão, largando a gavea de proa, & cevadeira sem querer já mais arribar, antes tornando cõ a proa para terra, sempre foy duas horas para ella cõtra o leme, & mareando, até que cõ hum grande mar tocando a quilha do mastro grande para a popa, de maneira, que logo se foi desfazendo...". Assim naufragou o galeão Sacramento na baía hoje chamada Sardínia, muito perto do actual Porto Elizabeth. Não há o propósito de descrever o que teria sido a tragédia do naufrágio, porém se hoje fossem descobertos os destroços do galeão Sacramento e a sua preciosa carga de canhões, fazendo trazer ao conhecimento o imenso drama de outrora e até nós, um dos mais interessantes problemas da arqueologia marítima do nosso século - o encontro no fundo do mar, de um canhão de bronze, fundido há cerca de 360 anos por Manuel Bocarro e que estaria "como se tivesse acabado de sair das mãos do fundidor". Voltamos ao governo de D.Filipe de Menezes, não sabemos se foi por inciciativa deste vice-rei ou se por proposta de algum dos membros do seu conselho, nos princípios de 1648, o nome de Manuel Bocarro foi apresentado ao rei "como digno de toda a merce". Portugal é um país em guerra e com muita necessidade de artilharia e naturalmente que os fundidores fossem estimulados no decorrer do seu trabalho e, óbviamente, recompemsados. Porém no Portugal da Restauração e com o fundidor Manuel Tavares Bocarro, não aconteceu assim. O Rei, por mais estranho que possa parecer negava-se a reconhecer os méritos do seu melhor e maior fundidor de artilharia e mais uma vez o seu nome foi meniconado para a justa recompensa de toda a sua grandiosa obra. Existia o propósito firme de nunca lhe conceder as "honras e merces" que Manuel Bocarro tanto ambicionava. Outros fundidores da sua época com trabalhos menos relevantes do que os dele eram regularmente compensados. A igratidão perante Manuel Bocarro assemelhava-se ao tratamento que tinha sido dado a Afonso de Albuquerque - o extraordinário fundador do Império Ultramarino Português - também se queixou amargamente que: "assi velho como eu sam, pouco alvorasado, ainda não sam homem para me ter a hua carta degradesimento del rei que me enche de vaidade com ella". Com Manuel Tavares Bocarro sucedia o mesmo e, no entanto, ao debruçarmo-nos sobre a sua vida, ele surge-nos sempre com um português que só queria servir o seu rei e a sua Pátria, tendo como maior ambiação a de ganhar, pela sua ciência e trabalho na fundição de canhões - que segundo as suas palavras, era a sua "natural inclinação", a honra de um foro de fidalgo com a mercê de um hábtito de Cristo, "com que ficaria honrado a ele e toda a sua descendência". A unica explicação que se pode encontrar, para que Bocarro não tivesse a recompensa que merecia e que tanto desejava, seria a de "impedimento canónicos". Deveremos lembrar que Portugal, em meados do século XVII, vivia uma época de intolerância e forte antipatia com ps judeus infieis e, a Manuel Bocarro, podia-se atribuir-lhe uma ascendência judaica - é certo longínqua - e, possivelmente, um casamento com alguma judia holandesa ou, talvez, com uma chinesa rica mas de duvidosa conversão à fé católica. Não obstante a posição da corte de Lisboa, na Índia e em Macau, os serviços de Bocarro eram devidamente apreciados e, pelos "seus merecimento e não outro respeito algu" foi, em fins do ano de 1651, nomeado para Conselheiro do leal Senado de Macau. Foi muito provável que, com esta nomeação, tivessem cessado todas actividades de Bocarro como fundidor de artilharia, de sinos e, eventualmente, de âncoras. No dizer do conde de Óbidos, nesse ano em Macau estava em "grande apertos", que no aspecto financeiro que no alimentar e, como consequência, manter-se-ia a falta de cobre e de ferro, o que certamente, provocava a paralização das oficinas de fundição de artilharia. Além disso, segundo as palavras do capitão-geral João de Sousa pereira, escritas em 1655 mas que, possivelmente se poderão aplicar a 1651, "quanto a se fazer fundição, ne a faz.ª delRey esta p.ra isso ne Manoel Tavares Bocarro te cabedal para a fundir à custa da sua faz.da". No entando, em estudos apresentados pelo padre Manuel Teixeira e pelo tenente miliciano Silva Amaro é referida a existência de uma peça de bronze - mas que não a localizam - com a seguinte legenda: POR ORDE DO CAPITÃO GERAL DE MACAO MANOEL TAVARES BOCARRO A FÊZ 1651.
N. Valdez dos Santos: Afigura-se-nos que a inscrição transcrita não está correcta quanto à data, dado ao anteriormente indicado e também por não constar do "Mapa demonstrativo do comprimento e pezo das Bocas de Fogo de bronze existentes nas diferentes fortalezas da Cidade de Macau" elaborada em 21 de maio de 1846, pelo então 1º sargento Vicente Nicolau Mesquita. Além disso há que ter em atenção o facto da referida peça não ter sido localizada, quer pelo padre Manuel Teixeira quer pelo tenete Silva Amaro, que se limtal a afirmar a sua existência. Isto faz pressupor que houve erro na leitura da legenda de uma das muitas peças fundidas por Bocarro em 1631 e que, como tantas outras, também já desapareceu. O "silêncio" documental que há sobre o nome de Manuel Bocarro nos muitos documentos consultados respeitantes aos anos de 1651 a 1654, causou-nos uma certa admiração porquanto as sua funções de Conselheiro do Leal Senado, juntamente com o facto de ser um abastado morador de Macau, com mais de trinta anos de permanência na cidade, outorgava-lhe uma posição social e um certo destaque que, dificilmente, poderia passar despercebido.
O padre Manuel Teixeira, no seu estudo sobre "os Bocarros" escreveu que: " O Prof. C.R. Boxer, em carta particular, datada de Londres aos 20 de Novembro de 1958, comunicou-nos o seguinte: " O filho de Pedro Dias Bocarro, chamado Manuel tavares Bocarro, era goês, e trabalhor em Macau desde 1625 até 1656 como fundidor, e desde 1657 até 1664 foi o capitão geral da colónia, consoante documentos nos arquivos de Goa, que lá achei em 1951. Não sei se morreu lá por 1664, ou se voltou a Goa, como ele quiz fazer entrar as suas filhas no convento de Santa Mónica".
CONTINUA (a parte seguinte finaliza o trabalho sobre Manuel Bocarro)
José Martins
Fontes: N. Valdevez dos Santos - Manuel Bocarro o Grande Fundidor - Lisboa MCMLXXXI . Estampas: Memórias das Armadas da Índia- Edições Mar-Oceano - Macau 1990.

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